Era criança naquela pequena cidade. Fervilhavam histórias medonhas que punham em sobressalto os corações dos meninos. O medo nos dominava quando a noite vinha. Ruas pouco iluminadas propiciavam tanto as brincadeiras de correr e se esconder quanto o terror.
Também, ajudando a vasta gama de histórias assombrosas, havia a reunião das crianças à noite. Em tais reuniões os mais velhos enchiam ainda mais as cabeças dos mais novos com coisas ouvidas de outros ou criadas ali, no calor da conversa. Todos ouvindo com olhos arregalados, atentos.
Muitos sabiam que teriam pesadelos durante o sono, ou que ficariam com receio dos monstros que estariam escondidos sob suas camas para, tão logo dormissem, subir para pegá-los. Se, porventura, já deitados, surgisse necessidade de urinar, outro momento terrível: o monstro estaria esperando só o instante de ver os pés tocando o chão para agarrar a vítima. Muitas vezes coloquei um pé no chão e esperei vários minutos até acreditar que nada ou ninguém o agarraria.
Apesar de nunca acontecer o que se temia, o medo era indiscutível, forte, pungente. Mesmo porque algumas histórias eram bastante verossímeis. Sem contar as verdadeiras, das quais se geravam novas vertentes mais grotescas e estarrecedoras.
Dessas tantas, uma me marcou profundamente. Surgiu uma história de que João do Mato, um sujeito que eu não conhecia, tentou abusar de duas filhas de sua mulher, quase ainda crianças. Uma delas, a mais nova, era também filha dele. Consta que ele trabalhava no campo e as mocinhas tinham a incumbência de levar-lhe o almoço. Acuadas pela mãe, ante a recusa, certo dia, de ambas as garotas em ir levar a comida, findaram por confessar o que havia ocorrido na vez anterior.
Todos comentavam a aberração. Dela se gerou uma maldição para João do Mato que, à noite, passou a se transformar numa porca. Não guardo de memória se a transformação se dava em noites de lua cheia, tão ao gosto de todas as lendas. Sei apenas que o animal em que ele se transformava era grande, quase desproporcional para uma porca; que roncava de forma diferente dos suínos comuns; que o ronco era aterrador; que andava pela pelas ruas assustando e perseguindo os incautos.
O medo, contudo, não tirava completamente o sono nem impedia as brincadeiras de correr à noite pela cidade. Éramos livres e nos agigantávamos em bando ruas afora. Um que perseguia todos, um a um, que iam fazendo uma cadeia em que se invertia o volume, passando o número de perseguidores a ficar cada vez maior até “caçar” o último perseguido, quando, então, era escolhido um novo membro do grupo para perseguir os demais.
Foi numa dessas brincadeiras que, tentando não ser encontrado para me tornar “o maioral” da noite, fui me escondendo por ruas mais distantes, até que dei com uma quelha esquecida, que não figurava na minha lembrança nem de dia. Era composta pelos quintais das moradias, dos quais, debruçando-se sobre o beco, pendiam alguns coqueiros que sussurravam em uivos lúgubres, embalados pelo vento proveniente do caudaloso rio que banha o lugar.
Entrei na viela com um sorriso de vitória: ninguém me encontraria ali. Ninguém lembraria de me procurar naquele lugar esquecido e escuro. Era só passar algum tempo sem ser descoberto e, depois, aparecer “do nada”, para glória pessoal e espanto geral.
Cheguei à cerca de vara que marcava o fim do caminho, barrando a passagem. Dava para ver a pouca luminosidade interior de algumas casas. Tudo já meio morto àquela hora, encaminhando-se para a escuridão total e o silêncio absoluto. Um calafrio me percorreu todo o corpo quando me dei conta de que estava sozinho. Contudo era necessário vencer o medo para vencer a brincadeira e ser o campeão da noite.
Mesmo tremendo vez por outra, arranjei força para continuar onde estava. Um uivo de algum cão distante rompia às vezes o silêncio e logo se ouvia o eco dos outros cães próximos ou também distantes. Aquilo me punha nervoso e me trazia vontade de fugir daquele ambiente soturno, correr de volta aos meus amigos e me fazer mais um caçador. Afinal, os caçadores andam em bandos, têm a segurança da idéia de ajuda mútua. Os caçados, por outro lado, têm sempre a sensação de desamparo, de abandono. O coração do caçado bate em sobressalto, sob a agonia de deparar o inimigo e saber que a regra para caçado e caçador é este estar sempre armado e aquele ser sempre o alvo. Sem contar as inúmeras vezes em que a caça ignora sua condição e percebe o perigo no último instante, quando já quase inexiste reação possível contra a emboscada.
Dei um passo em direção à saída da viela, mas não cheguei a completá-lo, ou seja, não cheguei a tocar o pé no chão adiante. O que vi naquele instante congelou meu movimento e, possivelmente, o meu sangue. Na entrada do beco surgiu um animal enorme, roncando. Movia-se em passos lentos, mas a cabeçorra se movimentava desenfreada e as orelhas em alguns momentos se descortinavam, expondo os olhos escuros da cor do invisível.
Voltei o pé muito lentamente, trêmulo de pavor, tentando evitar ser visto por aquela coisa horrível. Torcia para me tornar invisível na quelha escura. Encostei-me o mais possível ao canto de cerca onde me encontrava. A cerca fez um ruído abafado ao ceder um pouco sob a pressão do meu corpo. Um arrepio me varreu dos pés à cabeça. Tive a sensação de que o monstro olhou na minha direção.
Os roncos me chegavam absurdos, ensurdecedores, abíssicos. “Mamãe!”... “Mamãe!”. Gritei dentro de mim horrorizado e frágil. As forças me abandonavam e comecei a desmoronar sobre mim mesmo, enquanto o animal fuçava alguns amontoados de lixo dispostos na entrada da viela. Enquanto fuçava, emitia o som aterrador dos seus roncos e, nos curtos intervalos entre um e outro, o silêncio tinha um peso correspondente, em assombro, aos grunhidos, pois ensejavam a expectativa do próximo ronco e do seu próximo passo.
Minhas costas arranhavam contra a cerca na descida milimétrica que o meu tórax fazia em direção ao chão. Podia sentir as cascas se desprendendo das varas e acompanhando minha camisa na descida, fazendo um mínimo ruído que aos meus ouvidos parecia demasiado alto, o que aumentava o meu medo de que o monstro pudesse ouvir.
Cheguei finalmente ao chão. Um pequeno alívio me abraçou. Imaginei que sentado seria mais difícil ser visto pela fera. Abracei as pernas, pus o rosto entre os joelhos, deixando o nariz e os olhos de fora para respirar e ver cada movimento do animal.
Fiquei absolutamente quieto. Talvez nem mesmo piscasse. Tive a sensação, mais uma vez, de que ele olhou para mim. Para maior desespero meu, começou a movimentar-se em minha direção. As lágrimas me escorriam, enquanto tentava conter os soluços. Tremia convulsivamente. A pouca luminosidade proveniente da entrada da viela fazia ver vapores oriundos do bafejo da fera, ao tempo em que formava um halo em seu dorso curvo.
Meu Deus! Mamãe! Mamãe, Meu Deus! Alternei os pedidos de socorro num sussurro “baixinho como um choro desvalido”. Ele se aproximava e só me era possível ouvir seus os grunhidos. Nenhum outro som se fazia ouvir. Parecia todos os cães haverem sumido, emudecido. As palhas dos coqueiros também emudeceram. Cessara toda a vida ao redor.
Agora ele se encontrava demasiadamente próximo. Fechei os olhos em desespero, pensando na segurança da minha cama, na qual todos os monstros ficavam embaixo sem jamais ter a ousadia de me afrontar. Desejei estar sob seus lençóis, encolhido, abrigado daquele bafo quente que agora vaporizava meu rosto, lembrei-me do rosto carinhoso da aminha mãe e tudo deixou de existir.
As vozes dos meus colegas me despertaram do torpor daquele desfalecimento em que me encontrava, ainda recostado ao canto da cerca, trêmulo e em choro convulso. Queriam saber o motivo do meu desaparecimento e o que me aconteceu. Estiveram durante longo tempo à minha procura e, por fim, deram comigo ali. Contei tudo a caminho de casa e todos deixavam transparecer o medo que sentiam. Não foi uma boa noite de sono para nenhum de nós. Nada falei a minha mãe (nem ao meu pai), mas lhe pedi para me botar para dormir e contar uma história bonita.
Nos dias seguintes nosso grupo falava do caso apenas entre si. Era como se todos nós tivéssemos medo de comentar e sofrer alguma coisa em conseqüência.
Durante certo tempo, as brincadeiras se restringiram à vizinhança das nossas casas. Depois, como tudo, o medo foi nos abandonando e voltamos à antiga ousadia, até que fui embora do lugar.
Voltei depois de alguns anos para passar férias da universidade. Certa tarde, quando jogava futebol próximo à entrada da cidade, chegou alguém gritando que acabara de ocorrer um atropelamento na principal via de acesso.
Corremos em direção do acidente. Quando nos aproximávamos, alguém informou que a vítima era João do Mato. Imediatamente me lembrei do meu horror naquela noite de tempos atrás.
Já se juntava uma porção de pessoas ao redor do corpo inerte. Estava de bruços. Um corpo pequeno dentro das calças escuras e da rota camisa xadrez esverdeada. Difícil acreditar que aquele pequeno homem cor de bronze pudesse ser o mesmo monstro que me assombrou. Ri do medo exagerado da infância. Não passava certamente de um mero porco grande que o meu medo exacerbara.
Quem me viu rir não entendeu porque eu ria enquanto olhava o rosto inchado pelo choque do atropelamento. Contudo notei que a estrutura tumefeita em volta do olho na face esquerda, que era a face visível, uma vez que a outra estava colada ao chão, tinha a semelhança do rosto de um porco. Enquanto isto me ocorria, notei que o seu nariz se dilatou, como se farejasse alguma coisa, e a terra se mexeu sob o impulso do ar exalado. Então, seu olho esquerdo se abriu e se encontrou exatamente com os meus olhos espantados. Para meu horror, a boca também se abriu e ouvi um ruído roufenho, misto de tosse, ronco e riso escarnecedor e matreiro e um grunhido foi seu último estertor, embora o olho permanecesse fito nos meus olhos e aquela cara de riso sarcástico continuasse a zombar de mim.
sábado, 28 de agosto de 2010
Quem rir melhor
Marcadores: Lendas Urbanas
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